FALAR
(Ferreira Gullar)
A poesia é, de fato, o fruto
de um silêncio que sou eu, sois vós,
por isso tenho que baixar a voz
porque, se falo alto, não me escuto.
A poesia é, na verdade, uma
fala ao revés da fala,
como um silêncio que o poeta exuma
do pó, a voz que jaz embaixo
do falar e no falar se cala.
Por isso o poeta tem que falar baixo
baixo quase sem fala em suma
mesmo que não se ouça coisa alguma.
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FOLHAS DE RELVA
(Walt Whitman – extratos)
O que tem que ser será bom – pois o que é, é bom,
Interessar-se é bom, e não se interessar também é bom.
O céu continua lindo….o prazer dos homens com as mulheres nunca será
saciado…nem o prazer das mulheres com os homens….nem o prazer que provém dos poemas;
As alegrias domésticas, o trabalho ou negócio diário, a construção de casas – eles
não são fantasmas….possuem peso e forma e local;
As fazendas e os lucros e as safras..os mercados e os salários e o governo..eles também não são fantasmas;
A diferença entre pecado e bondade não é aparente;
A terra não é um eco….o homem e sua vida e todas as coisas de sua vida são bem consideradas.
Você não está ao léu…você se reúne com certeza e segurança ao seu redor,
De você mesmo! Você mesmo! Sempre você mesmo!
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O MEU NIRVANA
(Augusto dos Anjos)
No alheamento da obscura forma humana,
De que, pensando, me desencarcero,
Foi que eu, num grito de emoção, sincero
Encontrei, afinal, o meu Nirvana!
Nessa manumissão schopenhauereana,
Onda a Vida do humano aspecto fero
Se desarraiga, eu, feito força, impero
Na imanência da Idéia Soberana!
Destruída a sensação que oriunda fora
Do tato – ínfima antena aferidora
Destas tegumentárias mãos plebéias –
Gozo o prazer, que os anos não carcomem,
De haver trocado a minha forma de homem
Pela imortalidade das Idéias!
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POEMA
(Fernando Pessoa)
Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
Ou metade desse intervalo, porque também há vida…
Sou isso, enfim…
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos no corredor.
Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.
É um universo barato.
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PARADA CARDÍACA
(Paulo Leminski)
Essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure
vem de dentro
Vem da zona escura
donde vem o que sinto
sinto muito
sentir é muito lento
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FAUSTO
Floresta e Gruta
(J.W.Goethe)
Fausto
(sozinho)
Sublime Gênio, tens-me dado tudo,
Tudo o que eu te pedi. Não me mostraste
Em vão, dentro do fogo, o teu semblante.
Por reino deste-me a infinita natureza,
E forças por senti-la, penetrá-la.
Não me outorgaste só contato estranho e frio,
Deixaste-me sondar-lhe o fundo seio,
Como se fosse o peito de um amigo.
Expões-me a multidão dos seres vivos,
E a conhecer, na plácida silveira,
Nos ares, na água, os meus irmãos, me ensinas.
E quando o furacão no mato ruge,
Desmoronando-se, o gigante pinho
Vizinhos troncos e hastes espedaça,
E, troando, o morro a queda lhe acompanha;
Então me levas à tranqüila gruta,
Revelas-me a mim mesmo, e misteriosos
Prodígios se abrem dentro do meu peito.
E, suavizante, ala-se-me ante o olhar
A lua límpida: flutuantes surgem
Das rochas úmidas. Do argênteo bosque,
Alvas visões de antanho, a mitigar
O gozo austero da contemplação.
Mas nunca é doada a perfeição ao homem,
Ah! como o sinto agora! A esse êxtase
Que mais e mais dos deuses me aproxima,
Juntaste o companheiro que não posso
Já dispensar, embora, com insolência,
Me avilte ante mim próprio, e um mero bafo seu
Reduza as tuas dádivas a nada.
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AS JANELAS
(Charles Baudelaire)
Aquele que olha, da rua, através de uma janela aberta, jamais vê tantas coisas como quem olha para uma janela fechada. Nada existe mais profundo, mais misterioso, mais fecundo, mais tenebroso, mais deslumbrante, que uma janela iluminada por uma candeia. O que se pode ver ao sol nunca é tão interessante como o que acontece por trás de uma vidraça. Naquele quartinho negro ou luminoso a vida palpita, a vida sonha, a vida sofre.
Para além das ondas de telhados, diviso uma mulher já madura, enrugada, pobre, sempre debruçada sobre alguma coisa, e que nunca sai de casa. Pela sua fisionomia, pelas suas vestes, por um gesto seu, por um quase-nada, reconstituí a história dessa mulher, ou antes, a sua lenda, que por vezes conto a mim próprio, a chorar.
Se fosse um pobre velho, eu lhe haveria reconstituído a história com a mesma felicidade.
E vou-me deitar, orgulhoso de ter vivido e sofrido em outras criaturas.
Agora, haveis de perguntar-me: -“Estás certo de que essa história seja a verdadeira?” Que importa o que venha a ser a realidade colocada fora de mim, se ela me ajudou a viver, a sentir que sou, e o que sou?
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PÓLEN
(Novalis / extrato)
Estamos numa missão. Para a formação da Terra fomos chamados. Se um espírito nos aparecesse, então nos apoderaríamos prontamente de nossa própria espiritualidade – seríamos inspirados, por nós e pelo espírito ao mesmo tempo – Sem inspiração não há aparição de espíritos. Inspiração é aparição e contra-aparição. Apropriação e comunicação ao mesmo tempo.
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MINHA GRANDE TERNURA
(Manuel Bandeira)
Minha grande ternura
Pelos passarinhos mortos,
Pelas pequeninas aranhas.
Minha grande ternura
Pelas mulheres que foram meninas bonitas
E ficaram mulheres feias;
Pelas mulheres que foram desejáveis
E deixaram de o ser;
Pelas mulheres que me amaram
E que eu não pude amar.
Minha grande ternura
Pelos poemas que
Não consegui realizar.
Minha grande ternura
Pelas amadas que
Envelheceram sem maldade.
Minha grande ternura
Pelas gotas de orvalho que
São o único enfeite
De um túmulo.
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A ÁUREA PRESENÇA
(Emily Dickinson / extrato)
A Morte é um diálogo
Entre o Pó e o Espírito.
“Dissolve-te” – ela diz – mas este –
“Outra crença me inspira”.
Opõe-se a Morte em dúvida –
Vai-se embora o Espírito
Deixando só – como argumento –
Uma capa de argila